O mercado de trabalho por trás dos games

Os nem tão jovens devem se lembrar do Pitfall, um dos games mais populares dos anos 1980. Ele foi obra de uma startup da época, a Activision. Corta para 2022. A Activision, agora responsável também por jogos-padrão de outras gerações, como o Call of Duty e o Candy Crush, foi comprada em janeiro pela Microsoft por US$ 69 bilhões. Foi a maior entre as 224 aquisições que a criadora do Windows bancou ao longo de sua história.

O que faz todo o sentido. Desde 2018, a indústria de games é a que mais fatura no setor de entretenimento. Filmes do Homem-Aranha ainda rendem bem, claro. Foram US$ 3,2 bilhões desde o início da franquia, em 2002. Mas os games jogam em outra liga. Só Call of Duty proporcionou US$ 27 bilhões para a Activision desde o lançamento da primeira versão, em 2003.

E não é só no mundo dos games que a indústria de games atua. Simuladores (que nada mais são do que jogos feitos sob medida para o treinamento de atividades da vida real) fazem parte do dia a dia de pilotos de avião, profissionais de exploração de petróleo offshore, estudantes de medicina.

A gamificação, o uso de softwares que emulam joguinhos simples para estimular os usuários a concluir atividades mais concretas, também é amplamente utilizada, principalmente por empresas de educação, que convertem apostilas e lições repetitivas em jogos que desafiam os alunos a passar de nível. Também se joga nas áreas de vendas das empresas: sistemas testam o desempenho dos profissionais em situações que simulam a realidade.

Com tudo isso, a demanda por profissionais da área supera a oferta. “Simplesmente não existem pessoas suficientes para suprir todas as vagas. Precisamos de desenvolvedores, game designers, designers de narrativa, profissionais que testam os produtos”, resume Rodrigo Terra, presidente da Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos (Abragames).
Em tempo: game designer é o especialista na criação e no planejamento dos elementos, das regras e das dinâmicas de um jogo. Ele define as normas gerais que os demais profissionais vão seguir para que o game tenha uma linguagem coesa. Se um game fosse um filme, o game designer seria o diretor.

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Já o designer de narrativa é o roteirista: segue essa orientação inicial para criar a história de fato. “Ele precisa ter uma boa noção de cinema, teatro, literatura – afinal, é preciso desenvolver bons personagens”, diz o professor Agesandro Scarpioni, coordenador acadêmico do curso de Jogos Digitais da FIAP.

É com base no trabalho desses dois profissionais que entram os programadores, os designers gráficos, os especialistas em áudio. Dependendo do porte do estúdio que desenvolve o jogo, haverá várias funções bem específicas. “Há profissionais focados exclusivamente na transição entre uma fase e outra do game”, explica André Kishimoto, professor da Faculdade de Computação e Informática do Mackenzie.

André é gamer. Cursou graduação e mestrado em Ciência da Computação para trabalhar na área. Além de dar aulas, tem uma empresa que desenvolve jogos, a Kishimoto Studios. E faz questão de lembrar: saber trabalhar em grupo é uma habilidade crucial nesse ramo. “Raramente um profissional vai desenvolver um jogo sozinho, e boa parte da rotina consiste em seguir determinações técnicas em parceria.”

Ele também avisa de algo que parece óbvio, mas que nem todo mundo cuida com o devido apreço quando se entra nesse ramo: ter inglês na ponta da língua. “Este é um mercado aberto à exportação. Uma empresa pequena pode criar um jogo para smartphone que acabe atraindo interesse de players maiores, então é fundamental conseguir se comunicar no idioma”, afirma.
Existem estúdios especializados, por exemplo, em terceirização de arte de partes de jogos. Eles desenvolvem apenas esse aspecto dos games para empresas de todos os cantos do mundo. “Antes mesmo da pandemia já havia espaço para atuar à distância, prestando serviço para diferentes países. Os brasileiros têm sido muito procurados no exterior: são famosos pela criatividade e pela capacidade de resolver problemas”, diz André.

O caminho mais convencional para trabalhar na área é o que André trilhou: cursar graduação e pós numa da área de TI, como Ciência da Computação. Mas também há cursos específicos, que misturam programação, design e animação na grade curricular. É o caso de Design de Games (um bacharelado, com duração de quatro anos) e também de Jogos Digitais (uma formação como tecnólogo, que leva de dois a três anos).

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Gilberto de Ataíde Faria, professor do curso de Jogos Digitais da FMU, lembra mais uma área que pode contar com esse tipo de profissional: os empreendimentos no metaverso, ou seja, de criação de ambientes virtuais para qualquer tipo de coisa. De fato. O próprio Facebook mudou de nome para Meta, de modo a deixar claro que o negócio deles agora é desenvolver um metaverso para chamar de seu (ou algo maior, como transformar a internet inteira num único ambiente virtual gigante). Enfim: ainda deve correr muita água por baixo dessa ponte. “Com o mercado caminhando em direção ao metaverso, gente formada em jogos pode contribuir com modelagem de avatares, de objetos, e na criação de dinâmicas dentro desses espaços”, diz Gilberto.

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As oportunidades de trabalho na área, diga-se, não se restringem a quem atua diretamente no desenvolvimento de jogos, metaverso e cia. “Também há demanda para advogados especializados em propriedade intelectual e profissionais de marketing que conhecem a linguagem do meio, bastante específica”, diz Rodrigo, da Abragames.

O mercado em números

Os dados sobre o setor estão desatualizados. Contratado pelo Ministério da Cultura, o Censo da Indústria Brasileira de Jogos Digitais foi realizado em duas edições, publicadas em 2014 e 2018. O mais recente apontava que o faturamento do setor havia alcançado a marca de US$ 1,5 bilhão, o que posicionava o país como líder da América Latina e 13º no mundo.

De 2014 para 2018, o número de desenvolvedoras de jogos digitais havia saltado 182% e alcançado a marca de 375 empresas. Na avaliação da Abragames, que prepara um censo geral para 2022, a alta segue firme. “Sabemos que o mercado cresceu 85% em 2020”, diz Rodrigo Terra.

A empresa internacional de análise Newzoo estima que, em 2020, o mercado nacional alcançou US$ 2,18 bilhões de rentabilidade e 89 milhões de jogadores. Os games para smartphones representam 47% do mercado, os consoles respondem por 29% e os jogos para PC, por 24%.

A maior parte das grandes empresas globais de games não atua fisicamente no Brasil, só que mantém uma interação intensa com profissionais e empreendimentos daqui. Entre as iniciativas brasileiras, a maioria é de pequeno porte. Uma exceção notável é a Wildlife, fundada em 2011 para criar jogos para dispositivos móveis e que em 2019 ganhou o status de unicórnio – ao atingir um valor de mercado superior a US$ 1 bilhão. Ao longo de sua trajetória, cresceu em média 70% ao ano. Hoje, tem mais de 100 milhões de usuários ativos no mundo.

Engenheiro civil que há 12 anos atua como influenciador da área, com 4,1 milhões de seguidores no YouTube, Thiago Silva, mais conhecido pelo pseudônimo Zangado, acompanhou de perto o avanço deste mercado. “Já sou chamado de tio pelos meus inscritos”, afirma ele, que tem 29 anos. “Quando comecei, havia 30 canais brasileiros. Hoje são milhares.” A depender da área de atuação, ele recomenda que, mais do que jogar, é preciso conhecer o mercado.

“Quem optar por ser um assessor de imprensa de games, por exemplo, deve ter conhecimento sobre a área – as principais franquias, os consoles, os tipos de jogos. Mas não precisa exatamente jogar. Da mesma forma que um crítico de cinema não faz filmes.”

Um problema grave: em plena terceira década do século 21, o mundo dos games segue machista. “As mulheres estão ocupando seu espaço já há alguns anos, mas o ambiente ainda é tóxico”, afirma Thiago.

O paulistano Davi Batista ressalta o jogo de cintura necessário para trabalhar na área, seja você mulher ou homem. “Você precisa estar disposto a encarar críticas muito duras, dos colegas, dos concorrentes, dos clientes.” Aos 21 anos, ele criou sua própria empresa, voltada para e-sports, com um braço de desenvolvimento de jogos. “Sou gamer desde a adolescência, jogava 14 horas por dia. Hoje jogo menos, e mais focado em produtos novos, para entender por que funcionam e fazem sucesso. Não é necessário inventar a roda o tempo todo. Saber o que já dá certo ajuda muito.”

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E-sports

A Pesquisa Game Brasil identificou que, em 2021, cresceu 10,7% o total de adeptos dos e-sports. Entre os gamers brasileiros, 55,4% se consideram praticantes de esportes digitais.

Assim como qualquer modalidade que alcança um bom público, a digital conta com patrocinadores de grande porte, que garantem bons salários e premiações. De acordo com a consultoria Esports Earnings, que apura estatísticas no ramo, o salário base de quem está começando, mas já é habilidoso o suficiente para entrar em um time, é de R$ 4 mil. De resto, é como nos esportes profissionais: os gênios ascendem a um patamar bem superior. Há jogadores brasileiros que superaram os R$ 5 milhões em prêmios acumulados na carreira.

A área abre espaço para profissionais de marketing, como José Henrique Chuck Catani. CEO da agência de marketing Black Duck, de Campinas (SP), ele atende a dois desses grandes times, Fluxo e Kabum!, além do GGWP, um projeto de e-sports desenvolvido em parceria com a Ambev e que inclui a realização de eventos em diferentes locais do país, de forma a localizar novos talentos. Em 2021, o GGWP realizou três eventos presenciais. “Trouxemos quase 250 profissionais, de todos os estados”, diz Catani.

Os e-sports também abrem vagas para ofícios mais offline: nutricionistas, que desenham as dietas mais ajustadas para a rotina de treinos, fisioterapeutas, focados em reduzir o desgaste provocado pelo tempo excessivo que os jogadores profissionais permanecem sentados.

No fim, não é que as fronteiras entre o real e o virtual estejam se dissipando. Elas sempre vão existir. O ponto é que vamos transitar cada vez mais entre elas, sem nem perceber. Seja na hora da diversão, seja na do trabalho.

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